Capelinhos nos Açores, deste livro fantástico de João de Melo que li aos 15, 16 anos...
Deixo-vos com um excerto:
Vezes sem conta, diz George, lá em Toronto - nas malditas manhãs geladas de Toronto - dei comigo a chorar como uma criança. Eu e os meus homens tínhamos vestido vários pares de calças, ceroulas de flanela, peúgas sobre peúgas, luvas de pele de boi e samarras forradas a lã de carneiro.
Alguns de nós tínhamo-nos armado até de capacetes herméticos que caíam sobre os ombros, como os dos cosmonautas. de Houston, para nos defendermos daquele vento polar que em Toronto tem o peso do urso e que geme de guincho, como as cadelas no cio. Lá no alto das estruturas daquelas casas em construção, ou de cima de prédios que rompiam as nuvens, a pistola automática dos pregos cobria-se de flocos de neve e deixava de disparar.Os dedos, escorrilhados de frio, não seguravam num martelo, o broquim dos parafusos, as plainas, um miserável barrote de madeira. Só então eu soube como o frio queima. Há um fogo esquisito, feito de aço e de bunsen, dentro dessa punção fria que perfura os ossos e parece transformá-los em esquírolas. Não há dor comparável, nem pior sofrimento, e por isso perdíamos a vergonha de chorar.
Via-se Toronto lá muito ao longe, agachada na planície, e lembro-ne de pensar que a cidade rilhava o dente e tiritava, tanto quanto nós, sob o céu iluminado por esses cristais de gelo.
Os ossos estavam sendo crucificados e nós chorávamos de raiva, duma orgulhosa raiva emigrante. As malditas lágrimas do nossos orgulho coalhavam nos fios da barba, em redor dos cílios e dos pêlos do nariz. As sobrancelhas, brancas de neve, convertiam-nos numa nova espécie de velhos, com algas brancas que nos pendiam das suiças e das orelhas. De boca torcida sobre um sorriso de morte, éramos apenas emigrantes vindos dos brandos climas para construir casas nos arredores de Toronto. Mas casas para gente muito superior a nós, que as exigia prontas e sem defeitos, erguidas à beira dos lagos.
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