sexta-feira, 16 de maio de 2008

Desilusão




Desiludido com o mundo,
Afrânio concluiu: " uns são filhos da puta,
outros só não o são
porque a mãe é estéril"

Decidido ao suicídio,
no alto da falésia hesitou:
" no mar não me lanço
que é demasiada sepultura.
Como receberei flores
entre tanto peixe faminto?"

Ante a fogueira, Afrânio desfez as contas:
" Na labareda, não.
Como distinguiria,
depois, entre a cinza da lenha ardida?"

Quando na allta copa se pensou pendurar,
uma vez mais ele se avaliou.
E recordou o vizinho Salomão
que, de enforcado, se converteu em fruto,
seiva correndo na veia,
polpa viva a seduzir a passarada.



Afrânio regressou a casa,
resfregou as solas sobre os tapetes,
a esposa festejou o novo alento.

Engano seu, mulher, respondeu Afrânio.
Eu apenas escolhi outro suicídio.
A minha morte é este viver.

Maputo, 2006

Mia Couto


in "Idades, Cidades, Divindades"

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