Miguel Real entra na cabeça de Snu Abecassis e põe a sueca a falar para nós. A partir desse momento, Snu segreda-nos ao ouvido. Melhor – nós somos Snu Abecassis. Pelos seus olhos de estrangeira em Portugal, cerca dos anos 60/70, apreciamos as minudências de uma sociedade fingida. Tal como quando pensamos, não colocando pontuação no pensamento já que este não obedece a regras, o discurso de MR não nos defrauda. Os pensamentos, as observações, seguem e seguem e seguem. O pensamento não espera, Não pensa antes de o ser. Quando nos apercebemos que o pensamento sai… ele já cá está. Não evita que se repare na “pentelheira a escapar-se em tufos da gruta das orelhas” ou no padre capelão que “chegara, atrasado, miudinho e redondinho, uma barrica de gordura com pernas, cabelo cortado à escovinha, passinhos pequeninhos, mãozinhas gordinhas, desfiguradas, pele moribunda”, para citar dois dos muitos exemplos possíveis. Aliás, todo o livro é um mostruário de exemplos de observação e julgamentos silenciosos. E isto não se passa apenas em termos fisionómicos. Pela mão de MR – ou pelo pensamento de Snu – estamos a observar uma sociedade, maioritariamente a parte que anda pelos corredores do poder, uma sociedade, dizia, que convive com os últimos tempos da ditadura e mergulha no pós-25 de Abril não descolando de muitos dos tiques que caracterizavam o regime anterior.Mas, escrito em parte em jeito de flashback, este livro passa, também, por um testamento de amor.Os dez segundos que representam cada capítulo servem para Snu recordar a sua vida com o marido, desde a paixão ao divórcio, intercalados por outros dez segundos da memória/descrição do momento de paixão actual com Francisco Sá Carneiro e da sua génese. Até ao fim.Bem perto do final, não pára a caracterização do povo português, com o desfilar de nomes notáveis e da sua má sorte, fortuita ou provocada.O último minuto na vida de S. lê-se de seguida. Depois, apetece-nos ir reler jornais da época.
(retirado do blog A das Artes - Leituras)
Sem comentários:
Enviar um comentário